Trek to Yomi

Trek to Yomi – Análise

Os videojogos, como o cinema, a música e na realidade, o entretenimento, movem e custam demasiados euros para poderem arriscar, criativa e artisticamente, em todos os projetos. Portanto, a maior parte do que consumimos hoje em dia segue, naturalmente, vários padrões e normas daquilo que é, tipicamente, um videojogo rentável e com sucesso perante a comunidade.

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Trek to Yomi, distribuído pela Devolver Digital e produzido pela Flying Wild Hog e por Leonard Menchiari, decide deitar fora todos estes pressupostos e ir por outro caminho.

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Artesanal e imperfeito

Todos os elementos de Trek to Yomi são profundamente artesanais. Desde o momento em que iniciamos o combate de tutorial até ao final do jogo, todas as decisões tomadas de jogabilidade e design seguem esta visão criativa de forma exímia. Num jogo curto, de 4 a 5 horas, é notável a quantidade de cenários belos e desenhados ao pormenor.

Até porque por norma, a direção fotográfica é um aspecto mais relacionado com o cinema do que, necessariamente, com os videojogos. Porém, Trek to Yomi prova que não só existe espaço para esta valência como eleva de forma superlativa a experiência.

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O fundo preto e branco, que se arriscava a ser uma mera bengala acessória como em Ghost of Tsushima, consegue transportar-nos completamente para uma realidade e ambiente mais artística, como se o jogo tivesse sido programado e desenhado numa bobina analógica.

Graficamente, é notória a inspiração nos clássicos da era da PS2. Cenários estáticos com movimentos restritos da nossa personagem, o que permite a construção de autênticos quadros belíssimos. Ao contrário de Final Fantasy X ou Onimusha, por exemplo, todos os elementos deste quadro estão vivos. Seja um ramo que oscila com o vento, pessoas a fugir e a movimentar-se mais perto da câmara, ou inimigos que não reagem – Trek to Yomi é um local perigoso e bastante vivo, conseguindo criar um ambiente vibrante mesmo com a ausência de cor.

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A história, simples mas efetiva, passeia pelos temas clássicos das narrativas samurai: o valor da honra do guerreiro acima da glória pessoal, a utilização da força para a proteção ao invés da subjugação e o conflito pessoal para o equilíbrio. Hiroki é um protagonista competente e o seu arco, embora previsível, funciona, embora não encante. Ao contrário do ambiente e da arte fotográfica, as personagens e as suas ligações emocionais são negligenciadas.

Os beats dramáticos não têm espaço para fazer sentido e os acontecimentos são demasiado rápidos para que possamos criar uma relação com as figuras secundárias. Passamos o tempo todo com Hiroki, o que se por um lado nos ajuda a viver de forma mais intensa os valores do Bushido que ele representa, também nos afasta dos inimigos que combatemos e das personagens que defendemos.

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A lei do Samurai

Uma luta entre dois samurais, ao contrário do que a manga nos poderá indicar, não é de horas, com vários golpes, técnicas e ferimentos. São coisas de segundos, baseadas na velocidade e coordenação da katana perante o adversário. Este conceito é recriado no sistema de combate de Trek to Yomi.

Todos os momentos de combate podem terminar em segundos e vivem do timing e ritmo que imprimimos a cada golpe. Mais que atacar com velocidade, o jogo pede-nos e, em certos momentos, exige-nos uma mestria do sistema de parry. Temos uma barra de stamina que vai baixando consoante o tipo de golpes que aplicamos e a quantidade de golpes que aparamos com a nossa katana. Assim que acaba a stamina, ficamos desprotegidos e os nossos inimigos têm espaço para terminar com a nossa vida.

O sistema de parry permite-nos, se conseguirmos premir o botão no momento exato do golpe do adversário, deixá-lo desprotegido e, ao mesmo tempo, desferir uma combinação de golpes que o eliminem. Isto, naturalmente, quando conseguimos que aconteça. O sistema não é acessível. O ritmo difere drasticamente dos vários tipos de estocadas e golpes dos nossos inimigos e, muitas vezes, temos uma fracção de segundo para perceber qual o tipo de ataque que será utilizado.

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Isto faz com que, na gigantesca maioria das vezes, nos vejamos a sofrer dano que, quando em sucessão, nos elimina rapidamente a vida em poucos segundos. Trek to Yomi é bastante permissivo na disponibilização de Shrines – checkpoints que nos permitem retomar o progresso perdido – com bastantes disponíveis ao longo dos níveis.

Não é, contudo, a quantidade de vezes que morremos que nos causa frustração. Esse elemento está, lamentavelmente, ligado à repetição monótona da jogabilidade.

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Repetir até à perfeição / exaustão

O loop de jogabilidade é, francamente, o mesmo do início ao fim do jogo. Avançam um nível linear, surgem alguns inimigos, podem encontrar munições para as armas secundárias – um bacamarte, um arco e flecha e kunais -, colecionáveis e algumas skills extra. Trek to Yomi equipa-nos, ao longo da narrativa, com diversos combos entre golpes rápidos e fortes para conseguirmos lutar contra o maior tipo de inimigos possível.

Acontece que o tipo de inimigos que encontramos é, invariavelmente, quase sempre o mesmo. As técnicas de katana são quase idênticas entre todos os inimigos, variando apenas nos poucos que usam o bacamarte e o arco, ou os que empunham uma lança. Encontramos também alguns inimigos de armadura que possuem maior resistência e, inclusive, inimigos sobrenaturais com combos bastante distintos, com uma faca.

A inspiração é claramente um side-scroller beat ‘em up, mas sem a componente frenética e caótica. A maior parte dos combos que nos oferecem são, em larga escala, mais acessórios que estratégicos e inclusive, existem alguns que são perfeitamente gamebreaking (baixo + X, X, X, Y na Xbox e praticamente todos os inimigos normais morrem à primeira). Do ponto de vista analítico, é claro que este ponto é negativo e até algo aborrecido, por nos obrigar a repetir, de forma mecânica, os mesmos processos e estratégias para podermos ter acesso ao próximo momento narrativo.

Permitam-me, no entanto, contra-argumentar do ponto de vista criativo e emocional. Trek to Yomi propõe-nos interpretar um samurai com uma visível crise emocional. De resto, é justamente este desequilíbrio de valores e objetivos que arrasta Hiroki até às profundezas, literais, do inferno. O início do jogo, mesmo alicerçado num combate mais pausado, menos frenético, mais injusto, até, faz com que tenhamos dificuldade em assumir e encontrar os combos que nos permitam ter maior sucesso.

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Da mesma forma que Hiroki, conceptualmente, passa por um momento de transformação, por não saber o que o move, na realidade. Precisa de experimentar várias sequências, tomar decisões erradas, até escolhermos a que de facto é mais realista com a nossa experiência no jogo. Em termos mecânicos, acabamos por ganhar este conforto mais perto do jogo, quando descobrimos as combinações mais favoráveis, as que nos limpam hordas de inimigos mais rapidamente e nos permitem avançar mais depressa.

No fundo, ficamos mais confortáveis na pele de Hiroki, coincidindo, pelo menos no caso desta análise, com o momento em que o próprio Hiroki se sente mais confiante da sua missão e decisão. Esta decisão, até pelo bolo visual e artístico criado, não parece ser minimamente fruto do acaso e, se dispostos a fazer esse esforço, eleva Trek to Yomi enquanto experiência interativa.

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Considerações Finais

Contudo, é preciso esforço. Trek to Yomi não é Hollywood: é um jogo pouco acessível nas mecânicas, que nos obriga a repetir vezes sem conta as mesmas acções para entrarmos, a fundo, no papel e na luta interna da personagem principal, e utiliza os artífices artísticos, como o aspecto analógico e a preto e branco, para nos comunicar este dogmatismo.

Como qualquer peça de autor, tem alguns erros técnicos: algumas cutscenes ficaram sem narração, a música parava de tocar de todo de repente, quando olhado com detalhe as figuras humanas eram mais robóticas e falsas que interessantes. Mas Trek to Yomi não pode ser visto e experienciado apenas nos detalhes – é, novamente e reforçando, uma peça de autor. A banda-sonora é ambiental e serve como tapete para os vários momentos, focada nos crescendos rítmicos nos duelos com os bosses e no silvos naturais dos instrumentos nipónicos.

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A Devolver Digital tem sido a distribuidora que mais permite e possibilita estas experiências fora dos cânones da indústria, fora do que é lucrativo e mais assente na visão dos seus criadores. E Trek to Yomi, mais que tudo, é poesia em movimento. Obriga-nos a respirar, a absorver e desfrutar de cada cenário milimetricamente construído e orquestrado, a combater um sistema injusto e a encontrarmos um equilíbrio em conjunto. Só por isto, merece no mínimo a vossa atenção.


+ Ambiente analógico e belo
+ Artística e conceptualmente impactante
+ Curto, mas conciso

– Jogabilidade muito pouco acessível
– Problemas técnicos de som por limar

N.R.: A análise a Trek to Yomi foi realizada numa Xbox Series X através do Xbox Game Pass