Apple Irlanda Comissão Europeia

Aparentemente no caso da Apple todos ralham e todos têm razão

A Apple diz que cumpre o regime fiscal estabelecido pelo governo irlandês. O governo irlandês não se queixa da Apple. Mas a Comissão Europeia (CE) diz que os dois fizeram um acordo que é injusto e por isso exige o pagamento de 13 mil milhões de euros de impostos ‘em atraso’.

Esta é no geral a radiografia do caso que envolve as três entidades e que hoje, 30 de agosto, chegou ao seu primeiro desfecho – mas não ao último.



A Comissão Europeia é incisiva na forma como apresentou a conclusão da sua investigação começada em 2013: “A Irlanda deu benefícios fiscais ilegais à Apple avaliados em 13 mil milhões de euros”, começa por ler-se no comunicado.

“A investigação da Comissão concluiu que a Irlanda garantiu benefícios fiscais ilegais à Apple, o que permitiu à empresa pagar substancialmente menos impostos do que outras empresas ao longo dos anos. De facto, este tratamento seletivo permitiu à Apple pagar impostos corporativos a uma taxa de 1% nos seus lucros europeus em 2003, valor que baixou para os 0,005% em 2014”, salienta a CE.

O organismo europeu diz que os impostos pagos pela Apple através das suas duas subsidiárias na Irlanda – Apple Sales International e Apple Operations Europe – “não correspondem à realidade económica”. As vendas feitas por estas duas ramificações da Apple eram depois atribuídas à sede social da empresa, com a CE a defender que esta sede só existe no papel, nem sequer tem funcionários e que por isso não pode ter gerado tamanhas receitas ao longo dos anos.

Em 2015 e em todo o mundo a Apple reportou receitas de 234 mil milhões de dólares

“As duas decisões fiscais emitidas pela Irlanda [1991 e 2007, deixaram de ter validade em 2015] diziam respeito à afetação interna destes lucros no seio da Apple Sales International (e não na mais ampla estrutura de operações de venda da Apple na Europa). Mais concretamente, autorizavam uma divisão dos lucros para efeitos fiscais na Irlanda: em conformidade com o método acordado, a maior parte dos lucros era afetada internamente fora da Irlanda a uma ‘sede social’ no seio da Apple Sales International. Esta ‘sede social’ não estava baseada em qualquer país e não tinha quaisquer empregados nem instalações próprias”, defende a CE.

Na sua explicação a Comissão Europeia dá um exemplo para que todos possam perceber o que se passou. Em 2011 a Apple reportou lucros de 16 mil milhões de euros através da Apple Sales International. Mas deste valor apenas foram taxados 50 milhões de euros, o que resultou no pagamento de um imposto de 10 milhões de euros. Diz a CE que 15,95 mil milhões de euros ficaram por taxar ao abrigo da tal atribuição dos lucros e receitas à sede (head office é a expressão original usada no texto).

A Comissão Europeia quer agora que a Irlanda faça uma recuperação dos impostos por pagar para “remover a distorção” causada pela situação.

O valor, de 13 mil milhões de euros, pedido diz respeito aos dez anos anteriores a partir do momento em que a Comissão Europeia pediu os primeiros dados para esta investigação – algo que aconteceu em 2013.

Este é o caso apresentado pela Comissão Europeia e deste prisma o organismo apresenta fundamentos que parecem justificar a sua decisão. Mas o caso está longe de ficar encerrado. Tanto a Irlanda como a Apple já confirmaram que vão recorrer da decisão.

A carta de Tim Cook

O diretor executivo da Apple, Tim Cook, que recentemente celebrou o seu quinto aniversário à frente da empresa, publicou uma carta aberta na qual se dirige aos consumidores europeus. O CEO diz que a decisão da Comissão Europeia “não tem precedentes”, que terá “implicações sérias” no mercado europeu e que também poderá afetar a soberania dos Estados-Membros nos seus assuntos fiscais.

A Apple alega que é o maior pagador de impostos da Irlanda, dos EUA e de todo o mundo. Mas estes são soundbites expectáveis de quem possivelmente terá de pagar 13 mil milhões de euros de impostos em atraso, de acordo com a decisão hoje anunciada.



Há no entanto outras partes da carta aberta de Tim Cook que têm relevância.

“Ao longo dos anos recebemos orientação das autoridades fiscais irlandesas sobre como corretamente obedecer às leis fiscais irlandesas – a mesma tipologia de orientação que está disponível para qualquer empresa que tenha negócios no país”, lê-se numa das passagens. Aqui Tim Cook diz claramente que as condições que a Apple tem outras empresas também as podem ter, pois até vieram de aconselhamento ‘oficioso’.

“A opinião emitida no dia 30 de agosto [pela Comissão] alega que a Irlanda deu um acordo especial à Apple relativamente aos seus impostos. Essas alegações não têm base factual ou legislativa. Nunca pedimos, nem recebemos, qualquer acordo especial”, reiterou Tim Cook para depois acrescentar:

“Agora estamos numa posição pouco comum em que somos ordenados a pagar impostos retroativos adicionais a um governo que diz que não lhes devemos nada mais do que aquilo que já pagámos”.

A Apple estabeleceu-se na Irlanda pela primeira vez em 1980 e emprega atualmente seis mil funcionários no país

Esta passagem é especialmente forte pois coloca a Irlanda e a Apple numa luta contra a Comissão Europeia. E o mais provável é que em breve outras tecnológicas venham a apoiar esta dupla sob pena de conhecerem a mesma ‘sentença’ que a Apple conheceu e tendo por base argumentos semelhantes.

“Usando a teoria da Comissão, todas as empresas na Irlanda e na Europa estão subitamente em risco de serem sujeitas a impostos tendo por base leis que nunca existiram”, reforçou o ‘timoneiro’ da marca da maçã.

Aqui a referência é clara: a Apple diz que não violou qualquer lei para executar o regime fiscal que tem ativo na Irlanda. Não violando uma lei, a empresa considera difícil ser punida e por isso está crente de que o recurso acabará por lhe trazer uma vitória.

A Apple já se mostrou mais do que uma vez a favor de reformas fiscais profundas, sobretudo no seu país de origem – mesmo que isso leve ao pagamento de mais impostos do que aqueles que paga atualmente.

O ministro das finanças irlandês, Michael Noonan, disse por sua vez à Reuters que desaprova profundamente a decisão da CE, adiantando que vai pedir autorização ao governo para recorrer. “Isto [recurso] é necessário para defender a integridade do nosso sistema fiscal”.

Caberá agora à justiça avaliar as provas e os argumentos de cada parte para se saber quem tem afinal razão nesta disputa. Bastará, por exemplo, que o tribunal não encontre qualquer problema legal na tal questão da ‘sede fiscal’ para a CE perder um dos seus argumentos de peso. Por outro lado o tribunal também vai querer entender porque ficou tanto dinheiro da Apple por tributar.

Terminamos esta exposição com uma frase de Tim Cook, não para fazer pender a balança opinativa a favor da Apple, mas porque usou uma frase que deve ser escrutinada nas próximas semanas.

“E como em qualquer nova lei, elas devem ser aplicadas para a frente – não de forma retroativa”. Esta frase ajuda a enquadrar o cenário de ‘cinzento legal’, ou seja, empresas que usam vazios na lei para explorar determinadas condições. Este apontamento poderá ter um impacto forte não só neste caso, mas também noutros negócios emergentes que devido à sua disrupção colocam claramente em causa a validade das leis em vigor.

Caso a conclusão chegue à resposta do vazio legal, quem deverá ser culpado: quem tirou proveito da situação, quem não a corrigiu ou ambas as partes apertam as mãos e seguem a sua nova vida?