Jogatanas e Manias

Jogatanas e Manias #33: Alho, Vampiros e água Santa

Sabem aqueles momentos em que estão no Twitter, ou na Twitch, e façam o que fizerem, está tudo a falar “da mesma coisa”? Na gigantesca maioria das vezes são os títulos mais antecipados, como os AAA da Sony ou Nintendo. E das duas uma, ou ficamos com ar de enjoo por só se falar do mesmo jogo, ou com o bichinho a morder-nos as entranhas para podermos experimentar também.

Porém, há excepções à regra. E essa excepção aconteceu-me quando, já não me lembro quando, vi duas ou três pessoas com um screenshot cheio de luzes, números, mobs e confusão. Chamavam àquilo “Vampire Survivors”. Pareceu-me tão manifestamente absurdo que, quando percebi que estava disponível no Xbox Game Pass, decidi ir espreitar. Provavelmente rir-me-ia um bocado, achava. Estava tão enganado.

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Vampire Survivors é, podemos provavelmente chamar-lhe assim, o bebé de Luca Galante – ou poncle, nome da developer indie que criou para alimentar e sustentar o tesouro que encontrou. Porque, meus amigos: jogos tão viciantes, desafiantes e simples não aparecem em tanta quantidade quanto isso. Principalmente se tivermos em conta que Luca criou Vampire Survivors para, segundo o próprio, criar uma versão divertida, durante os fins-de-semana, de outro título chamado Magic Survivor.

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Não parece, mas estava a suar em bica aqui. Isto pode ficar intenso.

E a decisão, perfeitamente aleatória, reflete o ambiente e personalidade absolutamente Punk de Vampire Survivors. No ecrã inicial, vemos o que claramente é o Dracula de Castlevania, com um caçador de vampiros a empunhar o chicote que todos conhecemos por Vampire Killer, e uma mulher que não é Bayonetta, na posição de… Bayonetta. As personagens variam entre figurantes que podiam ter estado no Symphony of the Night até monstros épicos e árvores. Sim, Vampire Survivors deixa-nos controlar árvores.

Mas antes disso, importa reforçar porque é que Vampire Survivors nos agarra logo ao primeiro segundo. Acontece que o jogo funciona muito como um shoot ‘em up com balas automáticas: ou seja, não fazemos nada mecânico para controlar o ritmo ou velocidade dos nossos ataques. No entanto, são as nossas decisões e movimentação da personagem ao longo dos mapas que fazem a diferença entre o sucesso e o insucesso.

Cada personagem vem equipada com uma arma inicial e, ao longo de cada run, podemos desbloquear o restante arsenal para o tornar disponível de forma aleatória. O elemento mais aditivo começa aqui: é que não começamos com tudo disponível. Como num bom roguelike, a progressão é lenta mas segura. Temos uma lista de dezenas de achievements por cumprir, que nos comunica que ações tomar para desbloquear novas personagens, armas, itens, mapas e evoluções.

Através dessa lista, conseguimos ir aprendendo o jogo. É certo que vamos morrer sem completar runs das primeiras 10, 11 vezes. O nosso arsenal será demasiado limitado, as nossas personagens ainda não terão a capacidade de conseguir responder às ondas de inimigos mais intensas, pelo que o foco fica no completar da lista.

E à medida que desbloqueamos mais itens e níveis, encontramos mais evoluções de armas, que nos prometem a tão ansiosa sobrevivência, objetos raros que nos dão acesso a mais mecânicas de jogo, ou seja: será difícil não obterem acesso a, pelo menos, um item novo por run. A experiência que adquirimos ao longo de cada run escala com a personagem e com os acessórios que escolhemos, o que me levou muitas vezes a pensar se preferia nivelar mais depressa mas apanhar mais na boca, ou aumentar primeiro a minha força e nivelar depois.

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Caso para dizer: Epá, que ossada! Ahah, porque ossos e esqueletos, e coiso.

Esta progressão em escada manteve-me em runs que duravam, à vontade, uma tarde inteira que só paravam quando, depois da quinta ou sexta “vá, só mais uma tentativa”, percebia que tinha afazeres que ficaram para trás. Foi nesse momento que percebi que, apesar da simplicidade dos mapas, dos sprites dos inimigos, do sistema de nivelamento e até da própria jogabilidade, estava aqui algo especial.

Voltando atrás à história de Luca, na minha cabeça estava formado o cenário ideal para a criação dum jogo tão alternativo e ao mesmo tempo, tão divertido: certamente que era um comentário crítico ao atual ambiente AAA, repleto das mesmas fórmulas repetidas uma e outra vez, apenas em nome do lucro dos executivos, com políticas predatórias para o consumidor.

A utilização de assets que podem ter sido literalmente roubados de Castlevania será também uma espécie de Dadaismo, uma reutilização quase desligada de brio, como desconstrução daquilo que é um símbolo cultural e artístico e o que é que o torna assim.

Se de repente imaginaram tipos num estúdio cheio de cabos, pontas de cigarros e pullovers de existencialistas franceses da década de 50, entraram na minha fantasia. Que não podia estar mais longe da realidade, pois, como me acontece mais do que uma vez, os produtos culturais muitas vezes não escondem várias camadas que insistimos em lhes atribuir: no caso de Vampire Survivors, ganhou o nome e o ambiente medieval, literalmente, por acaso.

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Já este mar de inimigos dizimados ao segundo foi tudo menos por acaso. (Mentira, claro que foi ao acaso)

Foram os únicos assets que Luca comprara quando fez o protótipo, bastante semelhantes à saga de vampiros da Konami. E foi por causa desse acaso que percebeu: Bom, agora vou ter que criar o resto do jogo dentro deste universo, não é?

E assim nasce a Santa Water, a King Bible, o famoso Garlic. Não fazia parte dum plano maior, não queria influenciar-nos para determinado caminho, não. Foi apenas o que estava à mão para completar o projeto divertido que Luca tinha imaginado para se entreter nas horas vagas. Foi depois do Early Access que o jogo rebentou de tal forma que Luca sentira a obrigação de largar o seu trabalho e dedicar-se a 100% a Vampire Survivors.

Esta aleatoriedade fez com que o desenvolvimento assumisse também este aspecto mais cru do projeto e, também, mais humorístico. De facto, podemos jogar com uma árvore, mas também como um esqueleto, um kappa, várias estirpes de fantasmas e Grim Reapers… a escolha é absolutamente variada e o apreço da, agora poncle, pela sua comunidade é palpável. Todos os segredos estão muito bem guardados no jogo, implementados em updates recorrentes. Apesar do preço muito baixo do jogo, todos são gratuitos e levam-nos a explorar cada vez mais os mapas em busca de mais uma personagem, mais uma nod engraçada, mais um pedacinho de Vampire Survivors.

O DLC mais recente custa praticamente um café fora de Lisboa, com 8 novas personagens, mecânicas adicionadas, um mapa gigante novo e a promessa de podermos continuar a amealhar mais segredos, mais razões para nos lançarmos para mais 30 minutos, como se estivéssemos num palco e Vampire Survivors na audiência, a aplaudir e a gritar: SÓ MAIS UMA, SÓ MAIS UMA!

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Nunca o Japão Feudal teve tanta gema de experiência a ser sugada.

Vampire Survivors e a história de Luca Galante são um bonito lembrete para a nossa procura incessante da fórmula para o ouro. À semelhança de outros ilustres do meio, como a Treasure ou a divisão de Entertainment and Planning da Nintendo, o foco está apenas e só num ponto, a diversão do jogador. Neste caso, literalmente, tudo o resto veio por acréscimo: Luca apenas queria divertir-se com algo criado por si. E na busca pela diversão, acabou por criar um título de espírito Sega, descomprometido na missão de nos fazer sentir saciados sempre que escolhemos a personagem, vemos a primeira lista de acessórios e armas e pensamos para os nossos botões: Bom, se calhar desta vez não uso o Pentagrama.

Para ouvir: